A língua francesa, com a sua sonoridade elegante, vocabulário rico e estatuto de prestígio internacional, é falada hoje em dia por mais de 300 milhões de pessoas em todos os continentes. No entanto, por trás da sua aparência refinada e da sua presença global, esconde-se uma longa e fascinante história de transformação linguística, influências culturais, imposições políticas e dinâmicas sociais que moldaram o francês tal como o conhecemos hoje. A história da linguagem francesa é, na realidade, a história da própria França, da sua identidade e da sua projeção no mundo.
E para que a possa conhecer melhor, vamos explorar, em profundidade, a origem do francês, a sua evolução desde as suas primeiras origens, as transformações fonéticas e gramaticais, o papel da literatura e da centralização política, até à difusão global da língua através da colonização, da diplomacia e da cultura. A viagem começa na Gália, território ancestral onde tudo teve início.
A Gália: o berço linguístico antes do francês
Antes da chegada dos romanos, o território que hoje conhecemos como França era conhecido como Gália. Era habitado por diversos povos celtas, conhecidos como gauleses, que falavam línguas célticas do ramo continental, línguas que hoje estão extintas, mas que deixaram marcas residuais na toponímia (nomes de lugares) e possivelmente em alguns traços fonéticos e lexicais da língua francesa.

Em 58 a.C., Júlio César iniciou a conquista da Gália, que viria a ser totalmente anexada ao Império Romano por volta de 51 a.C. Com esta conquista, o latim tornou-se a língua da administração, do exército, da justiça e da elite urbana. Mas o idioma que se falava na Gália não era a linguagem clássica das obras literárias, mas o latim vulgar, o do povo, mais simples e sujeito a variações regionais.
Ao longo dos anos, a vertente vulgar foi gradualmente substituindo as línguas celtas entre a população gaulesa.
Este processo de romanização linguística foi relativamente eficaz e duradouro, sobretudo nas zonas urbanas e nas regiões mediterrânicas do sul da Gália. No entanto, não foi uniforme: o norte da Gália permaneceu menos romanizado durante mais tempo, o que teria consequências no desenvolvimento das variedades regionais do idioma e, mais tarde, no surgimento do francês.
O latim vulgar e as influências germânicas
Após a queda do Império Romano do Ocidente, no século V, a Gália foi invadida por vários povos germânicos, nomeadamente os visigodos, os burgúndios e, mais notoriamente, os francos. Estes últimos, uma confederação de tribos germânicas, estabeleceram o que viria a ser o Reino Franco, e deram o seu nome à França (“Francia”, terra dos francos).
A dinastia merovíngia, seguida pela carolíngia com Carlos Magno, consolidou o poder franco na região. Embora os francos falassem inicialmente uma língua germânica (o frâncico), o latim vulgar permaneceu como o idioma principal da administração e da cultura escrita. No entanto, o frâncico influenciou significativamente o latim utilizado no norte da Gália, introduzindo novos fonemas, palavras germânicas e estruturas gramaticais que viriam a diferenciar o futuro francês das restantes línguas românicas.
Esta variedade do latim vulgar foi, progressivamente, distanciando-se da vertente clássica e adquirindo características próprias. E tornou-se uma linguagem distinta.
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As primeiras evidências do francês antigo
A primeira prova escrita da língua francesa como entidade distinta do latim aparece em 842 d.C., com os Juramentos de Estrasburgo (Les Serments de Strasbourg), um tratado militar entre Carlos, o Calvo, e Luís, o Germânico, netos de Carlos Magno. Estes juramentos foram redigidos em três línguas: latim, germânico e uma forma de latim já transformado, aquilo que se pode considerar o francês antigo (ancien français).
No século IX, a distância entre o latim erudito e a língua falada pelas populações era tal que foi necessário legislar para que os sermões e documentos administrativos fossem escritos na “lingua romana rustica” (romance rústico), ou seja, uma forma inteligível do idioma para os falantes comuns. Esta é a base do francês.

Durante os séculos X a XII, o francês antigo consolidou-se como língua literária com obras importantes como "La Chanson de Roland", um poema épico de inspiração cavalheiresca. O idioma apresentava uma fonética e uma morfologia muito diferentes do francês moderno, com declinações ainda visíveis, uma fonologia mais complexa e grande variação dialetal.
Os dialetos do francês medieval: a língua d'oïl e a língua d'oc
Na Idade Média, o território da França atual era linguística e politicamente fragmentado. Havia uma variedade de dialetos derivados do latim vulgar, que podiam ser agrupados em duas grandes famílias:
- A língua d’oïl: falada no norte, incluindo Paris, era caracterizada pelo uso da palavra oïl (mais tarde oui) para dizer "sim". Foi esta variedade que daria origem ao francês padrão;
- A língua d’oc: falada no sul (nomeadamente na Occitânia), usava a palavra oc para "sim". A língua occitana ou provençal desenvolveu uma tradição literária própria, especialmente durante a época dos trovadores.
Ambas as línguas são românicas, mas divergiram foneticamente, lexicalmente e até sintaticamente. A escolha de um dialeto como norma nacional seria, inevitavelmente, uma escolha política, e esta escolha recairia sobre o dialeto da Île-de-France, a região em torno de Paris.
A centralização política e o surgimento do francês médio
Durante o reinado de Filipe II (1180–1223) e, mais tarde, sob Filipe IV e os Valois, o poder real começou a consolidar-se em Paris e a estender-se para o resto do território. À medida que a autoridade política da coroa francesa crescia, o dialeto da região de Paris (o franciano) foi ganhando prestígio como linguagem da administração, da justiça e da cultura.
Entre os séculos XIV e XV, assistimos ao desenvolvimento do francês médio (moyen français). As declinações desapareceram praticamente por completo, os tempos compostos começaram a ser mais usados, e o vocabulário expandiu-se com empréstimos de outras línguas, incluindo o latim clássico e o grego (influência do Renascimento), bem como o italiano e o alemão.
Um marco fundamental foi a ordonnance de Villers-Cotterêts, promulgada por Francisco I em 1539, que decretou que todos os atos legais e administrativos deviam ser redigidos em francês. Esta decisão não só reforçou a posição da língua francesa no país, como acelerou a sua normalização.
O francês clássico e a normalização linguística
Entre os séculos XVII e XVIII, surge o chamado francês clássico, uma forma mais estável e próxima do francês moderno. Durante o reinado de Luís XIV, o francês tornou-se a língua da diplomacia europeia, substituindo o latim como língua internacional das elites cultas.

A literatura floresceu com autores como Molière, Racine, La Fontaine, Voltaire e Rousseau, e o estilo francês tornou-se sinónimo de clareza, lógica e elegância.
Em 1635, o cardeal Richelieu fundou a Académie Française, uma instituição destinada a fixar, conservar e policiar a língua francesa. O seu objetivo era criar um dicionário normativo e preservar a pureza da língua contra as “corruptelas” populares ou estrangeiras. Ainda hoje, a Académie cumpre esse papel, com membros conhecidos como “les immortels”.
Durante esta época, o francês já era amplamente falado nas cortes europeias, e o seu uso era sinal de erudição. Paradoxalmente, dentro da própria França, uma grande parte da população rural continuava a falar dialetos regionais ou outras línguas românicas, como o bretão, o occitano ou o alsaciano.
A Revolução Francesa e a imposição do francês como língua nacional
A Revolução Francesa em 1789 marcou uma viragem na relação entre língua, política e identidade nacional. Os revolucionários viam a diversidade linguística como um obstáculo à unidade da República. O francês foi promovido como a única língua legítima da nação, símbolo de cidadania, racionalidade e progresso.
Durante o século XIX, sucessivos governos republicanos promoveram campanhas de “francesização linguística” através do sistema educativo. O famoso relatório do abade Grégoire, de 1794, denunciava a existência de mais de 30 línguas regionais em uso no território francês: um “problema” a ser resolvido. Com a criação da escola pública obrigatória por Jules Ferry em 1881, os alunos eram proibidos de falar patois ou outras línguas regionais, uma política linguística repressiva que tinha como objetivo a homogeneização cultural.
O francês no mundo: uma língua global
No século XIX e início do século XX, a França construiu um vasto império colonial, estendendo a sua presença linguística a várias regiões do mundo: África, América, Ásia e Oceânia. Com a colonização, o francês foi imposto como língua da administração, da justiça, da educação e dos meios de comunicação.
Países como o Senegal, Costa do Marfim, Camarões, Congo, Madagáscar, Haiti, Líbano, Vietname, Laos, Camboja e muitos outros foram profundamente marcados pela presença linguística e cultural francesa. Em muitos destes territórios, o francês tornou-se a língua oficial, mesmo após a independência. Em alguns casos, como no Canadá (nomeadamente no Quebeque), o francês é utilizado por uma maioria populacional e protegido por legislação própria.
Hoje em dia, o francês é uma das línguas oficiais das Nações Unidas, da União Europeia, da União Africana, do Comité Olímpico Internacional, da Cruz Vermelha, da Interpol, entre muitas outras organizações. É também língua oficial em 29 países e falada como segunda língua por milhões em África, onde o número de francófonos continua a crescer de forma constante, prevendo-se que, até 2050, a maioria dos falantes de francês vivam em países africanos.
O francês contemporâneo: desafios e evolução
O francês moderno, tal como qualquer outra língua viva, continua a evoluir. A gramática e o léxico mudaram desde o século XIX, e o uso real da língua nem sempre corresponde às normas da Académie Française. Há vários fenómenos que marcaram (e continuam a marcar) o francês contemporâneo, como:
A influência do inglês
Com a globalização e a hegemonia cultural anglo-americana, o francês tem sido fortemente influenciado pelo inglês, especialmente nos domínios da tecnologia, ciência, marketing e cultura popular. Palavras como “email”, “software”, “hashtag” ou “start-up” são largamente usadas, apesar dos esforços institucionais para criar equivalentes franceses (como courriel para email, ou logiciel para software).

A questão do franglais (mistura de francês com inglês) é controversa em França, onde muitos linguistas e defensores da língua consideram esta tendência uma ameaça à pureza do francês. A legislação francesa, como a Lei Toubon (1994), tenta limitar a invasão do inglês em documentos oficiais e na publicidade, mas a realidade do uso quotidiano nem sempre obedece a estas normas.
As variedades regionais e internacionais
O francês falado em França não é o único francês existente. Existem variedades nacionais de francês com características fonéticas, léxicas e até gramaticais distintas, como:
- Francês do Quebeque: com pronúncia distinta, expressões próprias e influências do inglês e do francês do século XVIII;
- Francês suíço e belga: com diferenças subtis na pronúncia e em termos de vocabulário (por exemplo, nonante para noventa, em vez de quatre-vingt-dix);
- Francês africano: utilizado como segunda língua ou língua franca, com particularidades locais, interferência de línguas nativas e pronúncia mais simplificada.
- Francês do Magrebe: fortemente influenciado pelo árabe e pelos dialetos locais.
Estas variações enriquecem a língua francesa, mas também colocam desafios quanto à padronização linguística e ao ensino do francês como língua estrangeira.
A linguagem inclusiva
Nos últimos anos, tem-se desenvolvido um debate intenso em torno da linguagem inclusiva no idioma, especialmente no que diz respeito à questão do género.
A gramática francesa, tal como a portuguesa, é altamente marcada pelo género, e a regra tradicional “o masculino sobrepõe-se ao feminino” tem sido contestada.
Expressões como étudiant(e) ou étudiant·e começaram a ser usadas para dar visibilidade ao feminino. Algumas propostas envolvem o uso do ponto médio (étudiant·e·s) ou do uso de formas neutras. A Académie Française tem-se oposto à linguagem inclusiva, alegando que compromete a clareza e a coerência da língua. No entanto, o debate continua vivo na sociedade, especialmente nos meios académicos e militantes.
O papel da língua francesa na identidade cultural
Mais do que um meio de comunicação, o francês é, para muitos, um elemento de identidade, um instrumento de criação artística, um símbolo de civilização. A literatura francesa, com nomes como Flaubert, Zola, Camus, Sartre, Beauvoir, Proust, Marguerite Duras ou Émile Zola, continua a ser uma das mais estudadas no mundo. O cinema francês, a música, o teatro, a filosofia e mesmo a culinária mantêm-se como veículos de difusão da língua e da cultura.
O francês é também uma língua de prestígio intelectual. Muitas escolas e universidades de elite continuam a utilizar o francês como língua de ensino, e existe uma vasta rede de alianças francesas espalhadas pelo mundo, que promovem cursos de língua, cultura e atividades culturais.

A língua francesa é também o elemento fundador da Francofonia, uma comunidade de países, regiões e instituições que partilham a língua francesa e promovem os valores da diversidade cultural, da cooperação internacional e da educação.
A Organização Internacional da Francofonia (OIF), criada em 1970, reúne mais de 80 países e governações, incluindo membros de pleno direito, observadores e associados. A OIF promove o ensino do francês, o desenvolvimento sustentável, os direitos humanos e o diálogo intercultural. É uma organização com peso diplomático, especialmente em África e nas Caraíbas.
Para muitos países africanos, o francês representa simultaneamente um legado colonial e uma ferramenta de mobilidade, acesso à educação e comunicação internacional. O desafio atual da Francofonia é conciliar esta diversidade de contextos e usos da língua com uma política linguística que respeite a soberania cultural dos seus membros.
A historia da lingua francesa é um reflexo da história da própria França: marcada por conquistas, influências externas, centralizações políticas, revoluções sociais e expansões globais. Desde os idiomas falados na Gália até à língua internacional que hoje se fala em quatro continentes, o francês percorreu um longo caminho de transformação.
No geral, não se trata apenas de uma sucessão de mudanças fonéticas e gramaticais, mas de uma narrativa profundamente ligada ao poder, à identidade, à cultura e à educação. O francês não é apenas a língua de Descartes ou de Victor Hugo, mas também a de milhões de pessoas que a usam como língua materna, segunda língua ou de cultura.
Num mundo cada vez mais globalizado e dominado pelo inglês, o francês continua a afirmar-se como língua de diversidade, de pensamento crítico, de diplomacia e de criação artística. A sua história, longe de estar encerrada, continua a escrever-se todos os dias, nas escolas, nas ruas, nos livros, nos filmes, nas canções e nas vozes de todos os que a escolhem como veículo de expressão. Por isso, saber mais um pouco sobre o francês é compreender não apenas uma língua, mas toda uma civilização!